TRANSTORNO BIPOLAR DO HUMOR E DEPENDÊNCIA DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS
(1) Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD) – Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
(2) Programa de Doenças Afetivas (PRODAF) – Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
O transtorno bipolar e o uso indevido de substâncias psicoativas são doenças com alto potencial
de limitação de autonomia, tornando-se ainda mais sérios quando associados. Este artigo
apresenta as evidências científicas disponíveis acerca da epidemiologia, etiologia, evolução clínica,
diagnóstico e tratamento farmacoterápico e psicossocial da comorbidade transtorno bipolar do
humor e uso indevido de substâncias psicoativas.
Abstract
The bipolar disorder and substance abuse are illness with highly autonomy limitation potential,
becoming still more serious when associates. This article presents the available scientific
evidences concerning the epidemiology, aetiology, clinical evolution, diagnosis and
pharmacological and psicossocial approaches designed for the bipolar disorder and substance
Revista de Psiquiatria Clínica 2005; 32(1): 78-88. Introdução
O uso indevido de substâncias psicoativas pelo paciente bipolar é extremamente comum e mais
freqüente do que o observado na população geral (Kessler, 2004). Tal associação é capaz de alterar
a expressão, o curso e o prognóstico de ambas as patologias (Levin & Hennesy, 2004; Krishman, 2005),
mesmo quando o consumo de álcool e/ou drogas é considerado de baixo risco ou moderado (Os et
al., 2002; Shrier et al., 2003). A presença de outro transtorno psiquiátrico em dependentes químicos
torna mais provável a procura desses por tratamento, fazendo com que as comorbidades sejam
bastante recorrentes nos ambulatórios e enfermarias especializados (Grant, 1997; Hersh & Modesto-Lowe,
1998). Apesar da prevalência bem demonstrada, ainda há uma grande quantidade de lacunas, tais
como a ausência parâmetros diagnósticos confiáveis e a falta de metas terapêuticas apropriadas,
que colocam o psiquiatra em situações de dúvida e indecisão. O presente artigo apresenta as
evidências científicas acerca da etiologia e da evolução clínica dessa comorbidade, seus critérios
diagnósticos, bem como as estratégias farmacológicas e psicossociais disponíveis.
Epidemiologia
Os transtornos relacionados ao consumo de substâncias psicoativas estão entre as patologias
psiquiátricas mais comuns. Em um estudo realizado em três capitais brasileiras (Brasília, São
Paulo e Porto Alegre) no início dos anos noventa, o uso indevido de álcool foi detectado em quase
10% da população, sendo que mais da metade desta estava desprovida de tratamento (Almeida-Filho
et al., 1992). O I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas no Brasil (2001) (Carlini et al., 2001)
detectou que cerca de dois terços da população já consumiu álcool pelo menos uma vez na vida e
outros 10% são dependentes da substância. Quanto ao uso de drogas ilícitas e prescritas, o uso
na vida atingiu quase um quinto dos brasileiros. Entre estudantes do ensino fundamental e médio,
o consumo na vida de álcool atinge 70% dos mesmos, enquanto o de outras substâncias, 25%
O transtorno bipolar humor, acomete cerca de 1% da população geral brasileira (Almeida-Filho et al.,
1992). Mesmo sendo pouco freqüente, seu impacto sobre a vida dos indivíduos e seus grupos de
convívio se traduz em um sério problema de saúde pública. Além disso, o conceito da doença
sofreu reformulações significativas nos últimos anos, ampliando o espectro da doença. Desse
modo, estudos mais recentes apontam para índices de prevalência até cinco vezes maiores, se
comparados aos atuais (Akiskal, 1996). A partir desses novos critérios, cerca da metade dos
indivíduos com diagnóstico para depressão unipolar poderiam ser considerados portadores de
transtorno bipolar tipo II (Perugi & Akiskal, 2002). Isso significa que essa categoria de transtorno bipolar
pode ser mais prevalente que a depressão maior, requerendo atenção redobrada por parte dos
profissionais e órgãos de saúde (Angst, 2004).
O transtorno bipolar é a patologia do eixo I mais associada ao uso indevido de substâncias
psicoativas. Os índices de comorbidade com o uso indevido de álcool atingem 60 - 85% desta
população ao longo da vida (Regier et al., 1990; Veta et al., 2001), enquanto o consumo de outras
substâncias psicoativas (excluído o tabaco), de 20 – 45% (Strakowski e DelBello 2000; Krishnan, 2005). O
uso de indevido de álcool e drogas parece ser mais prevalente no sexo masculino, apesar de não
haver diferença com as mulheres no que concerne ao uso de algumas substâncias, como a
cocaína (Cassidy, 2001). Além disso, o consumo feminino de substâncias psicoativas chega a ser de
quatro a sete vezes mais intenso do que a média geral para o mesmo sexo (Hendrick et al., 2000).
Já entre os pacientes com problemas relacionados ao uso de álcool e drogas, um quarto apresenta
algum transtorno do humor associado (Hasin e Nunes, 1998). Nos serviços especializados, a
prevalência de dependentes químicos com depressão associada pode atingir 50% e com
transtorno bipolar, de 20 a 30% (Grant, 1997; Hersh e Modesto-Lowe, 1998). Esses achados foram
corroborados no Brasil por Cividanes (2001), que encontrou uma porcentagem de 22,4% de
transtornos relacionados ao consumo de álcool entre 85 pacientes internados em dois hospitais
psiquiátricos e um serviço ambulatorial. Por outro lado, Menezes & Ratto (2004) observaram
psicóticos (incluindo o transtorno bipolar do humor) em diversos ambientes de tratamento em São
Paulo e encontraram uma baixa porcentagem de uso nocivo (4,2%) e dependência (3,1%) de
álcool. Quanto ao uso indevido de outras drogas, 8,3% dos participantes referiram algum consumo
nos últimos 12 meses, sendo a maconha (5,2%), os benzodiazepínicos (4,1%) e a cocaína (2,6%),
Antecedentes familiares de uso indevido de álcool e drogas são muito comuns nos pacientes
acometidos pela comorbidade em questão (Nolen et al., 2004). A prevalência é ainda maior quando,
além do transtorno bipolar e do uso de substâncias psicoativas, um transtorno de conduta é
Hipóteses etiológicas
A razão para os altos índices de uso indevido de substâncias em indivíduos com transtorno bipolar
do humor é desconhecida. Atualmente, reconhece-se que as relações etiológicas entre o consumo
de álcool e drogas e os transtornos afetivos são complexas, heterogêneas, bidirecionais e variáveis
ao longo do tempo. Algumas hipóteses já foram aventadas (quadro 1). Apesar de observadas em
algumas situações, nenhuma destas é aplicável a todos os casos, podendo também aparecer
associadas em sinergismo (Brady 1999; McQueen e Young, 2001).
Quadro 1: hipóteses etiológicas para a ocorrência de comorbidades entre o consumo de substâncias químicas e os
Sintomas do humor predispõem o uso de substâncias (hipótese da automedicação)
O uso de substâncias químicas leva à comorbidade (hipótese da toxicidade)
As repercussões sócio-econômicas do uso levam à comorbidade
Ambos os transtornos tem uma causa comum (exemplo: t. p. anti-social)
Sintomas depressivos podem predispor o uso de substâncias químicas (hipótese da
automedicação). Podem também resultar de dificuldades sócio-econômicas (desemprego,
separações afetivas,.) decorrentes de um consumo mal adaptado (hipótese sócio-econômica) ou
serem decorrentes de alterações neuroquímicas (transitórias ou persistentes) produzidas pelo uso
crônico ou pela síndrome de abstinência (hipótese neurotóxica). Por fim, é possível que sejam
patologias independentes ocorrendo coincidentemente num mesmo indivíduo (hipótese genética)
(Merikangas e Stevens, 1998; Strakowski e DelBello 2000).
Evolução clínica
Algumas evidências apontam que o transtorno bipolar geralmente antecede o uso indevido de
substâncias (Kupka et al., 2001; Kessler, 2004). Ainda assim o uso de álcool e drogas pode contribuir
para o surgimento da primeira crise (depressão ou mania) em certos grupos de pacientes,
habitualmente em idade mais precoce do que a observada em pacientes bipolares não-usuários
(Strakowski et al., 1996; Levin & Hennesy, 2004). Apesar de tais achados ainda serem escassos e carecem
de melhor entendimento (Krishman, 2005), o transtorno bipolar é considerado fator de risco para o uso
indevido de substâncias (Biederman et al., 1997) e o último, um agente complicador e sinal de
prognóstico reservado, tanto para a evolução do transtorno bipolar, quanto para a resposta ao
tratamento instituído para o mesmo (Drake et al., 2004; Kessler, 2004).
O risco para o desenvolvimento dessa comorbidade é ainda maior quando o transtorno bipolar se
inicia precocemente (Tohen et al, 1998) ou vem acompanhado ou precedido por transtornos de
conduta (Levin & Hennesy, 2004) e impulsividade (Swann et al., 2004). Carlson et al. (1998) examinaram
dados do Epidemiological Catchment Area (ECA) para determinar a ocorrência de transtorno
bipolar, transtornos de conduta e abuso de substância em 132 indivíduos que preenchiam os
critérios para o transtorno bipolar. Eles detectaram que aqueles com transtorno de conduta na
infância tinham maior probabilidade de desenvolvimento do uso indevido de substâncias se
comparados aos bipolares sem problemas de comportamento durante a infância. Há ainda, a
possibilidade de os transtornos de conduta e comportamentos disruptivos infantis serem, na
realidade, sintomas de mania na infância, uma categoria nosológica que recebeu pouca atenção
dos profissionais até recentemente, reforçando o elo causal entre o transtorno bipolar e o uso
indevido de substâncias psicoativas na idade adulta (Levin & Hennesy, 2004).
Se a relação de causalidade é ainda entremeada por inúmeras lacunas e incertezas, o papel do
consumo de substâncias como fator de piora na evolução do transtorno bipolar do humor é bem
estabelecido e consensual (Rush, 2003). Nolen et al. (2004) acompanharam por um ano, 258
pacientes bipolares e observaram que a gravidade dos sintomas observados estavam diretamente
relacionados ao consumo de substâncias pelos pacientes, antecedentes de dependência de álcool
e drogas pelos pais e baixo nível ocupacional. Segundo Krishnan (2005), as complicações do
consumo de substâncias sobre o transtorno bipolar incluem maior incidência de episódios mistos e
ciclagem rápida, aumento do tempo de remissão das crises, maior incidência de complicações
clínicas e aumento dos índices de tentativa de suicídio e suicídio entre estes indivíduos. Outros
achados, apontam para uma estreita relação entre o consumo de álcool e drogas e o aumento da
intensidade dos sintomas de depressão e mania, do fracasso na resposta às abordagens
terapêuticas (medicamentosas e psicossociais) e do número e duração das internações (Salloum et
al., 2002; Drake et al. 2004; Levin & Hennesy, 2004).
Álcool
O uso indevido de álcool é a comorbidade mais associada ao transtorno bipolar do humor (Vieta et
al., 2001), sendo essa condição até cinco vezes mais prevalente entre os pacientes bipolares do que
na população geral (Kessler, 2004). O consumo de álcool entre pacientes bipolares aumenta o risco
de crises (especialmente a depressão), de internações e tentativas de suicídio (Cividanes, 2001).
Salloum et al. (2002) conduziram um estudo com 256 pacientes em mania internados para
tratamento. Os pacientes que também possuíam diagnóstico para uso nocivo/dependência de
álcool apresentaram mais sintomas de mania, maior labilidade do humor, impulsividade e episódios
violência do que aqueles sem uso atual de álcool. Slama et al. (2004) estudaram 307 pacientes
bipolares em tratamento ambulatorial e constataram que a presença de uso indevido de álcool
aumentou o risco de suicídio da amostra.
Cocaína
O consumo de cocaína chega a acometer 1/3 dos pacientes bipolares, aumentando ainda mais
quando o transtorno bipolar está associado a um transtorno de ansiedade (pânico, fobia, TOC)
(Golberg et al., 1999). A cocaína é utilizada mais comumente para manter ou potencializar o quadro de
mania do que como ‘automedicação’ dos sintomas depressivos (Crawford et al., 2003). A adesão é o
principal problema dos usuários de cocaína (Golberg et al., 1999; Crawford et al., 2003). Além disso, a
associação entre o uso de cocaína e a ocorrência de problemas legais e transtornos de
personalidade (Havassy & Arns, 1996) e a presença de uso concomitante de álcool e crack (Gossop et al.,
2003) comprometem, per se, a evolução do curso da doença e do tratamento, representando mais
Maconha
Os efeitos deletérios da maconha estão relacionados à dose utilizada, à precocidade do início do
consumo, às características de personalidade do usuário e à vulnerabilidade do mesmo para
complicações psiquiátricas (Os et al., 2002; Henquet et al., 2005). A relação entre o consumo de maconha
e o desenvolvimento de depressão maior foi documentada por alguns estudos. Bovasso (2001)
entrevistou, 15 anos depois, 1920 indivíduos que haviam participado, em 1980, do Epidemiological Catchment Area (ECA), na cidade de Baltimore. Entre os usuários de maconha sem diagnóstico
inicial de depressão maior, o risco de aparecimento de sintomas depressivos entre as entrevistas
foi quatro vezes maior, quando comparado ao grupo de não-usuários e sem transtorno psiquiátrico.
Lynskey et al. (2004) acompanharam 277 pares de gêmeos, sendo apenas um deles dependente
de maconha e 311 pares de gêmeos, tendo apenas um deles iniciado o consumo antes dos 17
anos. Apenas entre os gêmeos dizigóticos, a dependência de maconha aumentou o risco de
depressão maior. O risco de tentativa de suicídio foi três vezes maior entre os dependentes, sejam
esses mono ou dizigóticos. O início precoce do consumo esteve associado ao risco de suicídio
para ambos os tipos de gêmeos, mas não ao desenvolvimento de depressão. Tais achados
sugerem que essa comorbidade possui componentes genéticos e ambientais.
No entanto, a relação entre o uso de maconha e o transtorno bipolar é menos conhecida. O
consumo de maconha aumenta o risco, a intensidade e o tempo de duração de uma crise,
geralmente polarizada para a mania (Strakowski et al., 2000). Rottanburg et al. (1982) observaram que
um grupo de pacientes psicóticos com testes de urina positivos para maconha possuía crises
marcadamente hipomaníacas, agitação psicomotora mais intensa, maior desorganização e
duração mais prolongada da crise após o início do tratamento, se comparados com pacientes
psicóticos livres da substância. Goldberg et al. (1999) observaram que o consumo de maconha ou
álcool em um grupo de pacientes bipolares internados aumentou o tempo de remissão do quadro,
em comparação com bipolares não-usuários de substâncias psicoativas ou usuários de cocaína.
Critérios diagnósticos
O diagnóstico da comorbidade começa pela identificação da presença simultânea do transtorno
bipolar do humor e transtornos relacionados ao consumo de substâncias psicoativas a partir dos
critérios da Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10 / OMS ou do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV / APA) (quadro 2). Os critérios
diagnósticos para ambas são objetivos e de fácil detecção pelo profissional capacitado. A
dificuldade diagnóstica, no entanto, está na atribuição causal acerca do quadro afetivo observado.
A décima edição da Classificação Internacional das Doenças, CID-10, (OMS, 1993) não orienta os
profissionais da saúde para essa questão, limitando-se a descrever os transtornos orgânicos do
humor e os transtornos do humor propriamente ditos. Já o DSM-IV (APA, 1993) propõe algumas
diretrizes para a identificação da natureza primária ou secundária dos transtornos mentais
induzidos por substâncias (quadro 3). Quadro 2: Critérios do CID-10 e DSM-IV para dependência de substâncias
Um diagnóstico definitivo de dependência deve usualmente ser feito Um padrão mal-adaptativo de uso de substância, levando a prejuízo
somente se três ou mais dos seguintes requisitos tenham sido clinicamente significativo, manifestado por três (ou mais) dos
experenciados ou exibidos em algum momento do ano anterior:
seguintes critérios, ocorrendo a qualquer momento no mesmo
um forte desejo ou senso de compulsão para consumir a
tolerância, definida por qualquer um dos seguintes aspectos:
dificuldades em controlar o comportamento de consumir a
uma necessidade de quantidades progressivamente
substância em termos de seu início, término e níveis de
maiores da substância para adquirir a intoxicação ou a
um estado de abstinência fisiológico quando o uso da
acentuada redução do efeito com o uso continuado da
substância cessou ou foi reduzido, como evidenciado por:
síndrome de abstinência para a substância ou o uso da (2) abstinência, manifestada por qualquer dos seguintes aspectos:
mesma substância (ou de uma intimamente relacionada) com
síndrome de abstinência característica para a substância
a intenção de aliviar ou evitar sintomas de abstinência;
a mesma substância (ou uma substância estreitamente
evidência de tolerância, de tal forma que doses crescentes da
relacionada) é consumida para aliviar ou evitar sintomas
substância psicoativa são requeridas para alcançar efeitos
originalmente produzidos por doses mais baixas;
a substância é freqüentemente consumida em maiores
abandono progressivo de prazeres e interesses alternativos
quantidade ou por um período mais longo do que o pretendido
em favor do uso da substância psicoativa, aumento da (4) existe um desejo persistente ou esforços mal-sucedidos no
quantidade de tempo necessária para se recuperar de seus
sentido de reduzir ou controlar o uso da substância
muito tempo é gasto em atividades necessárias para a
persistência no uso da substância, a despeito de evidência
obtenção da substância, na utilização da substância ou na
clara de conseqüências manifestamente nocivas (deve-se
fazer esforços claros para determinar se o usuário estava
importantes atividades sociais, ocupacionais ou recreativas
realmente consciente da natureza e extensão do dano.
são abandonadas ou reduzidas em virtude do uso da
o uso da substância continua, apesar da consciência de ter um
problema físico ou psicológico persistente ou recorrente que
tende a ser causado ou exacerbado pela substância
Um roteiro para a investigação de algumas hipóteses (Crome, 1999) pode ser útil para determinar a
relação de causalidade entre as patologias observadas:
1. O consumo de substâncias (ainda que uma única vez) desencadeou o transtorno bipolar do humor.
2. A falta do consumo (síndrome de abstinência) causou ou exacerbou o transtorno bipolar do humor.
3. O transtorno bipolar do humor levou o indivíduo ao uso indevido de substâncias.
4. O transtorno bipolar do humor levou ao uso indevido de substâncias, que por sua vez repercutiu
negativamente na evolução do primeiro.
Apesar de úteis na prática clínica diária, tais diretrizes estão longe da operacionalidade total.
Conforme discutidas anteriormente, as relações de causa e efeito entre o transtorno bipolar e o uso
indevido de substâncias ainda não estão totalmente esclarecidas e podem não ser as mesmas
para todos os pacientes. Além disso, os sintomas relacionados à dependência de substâncias
psicoativas e ao transtorno bipolar freqüentemente se sobrepõem (Brady et al., 1999).
Quadro 3: Diretrizes diagnósticas do DSM-IV (APA,1993) para a atribuição de um transtorno mental induzido por sinais de transtorno mental induzido por substância
início durante a intoxicação ou abstinência, com melhora após a resolução dessas.
presença de características atípicas do transtorno mental (p.e. primeiro episódio de mania após os 45 anos).
sinais de transtorno mental não-induzido por substância
persistência dos sintomas a despeito da resolução do quadro de intoxicação ou abstinência por mais de 4
sintomas surpreendentes em número e/ou intensidade em comparação aos observados nas síndromes de
episódios anteriores do transtorno mental livre do uso de substâncias.
sinais de transtornos mentais mimetizados por substância
sinais e sintomas ligados às características fisiológicas e comportamentais da intoxicação ou da abstinência da
substância, após a utilização de uma dose compatível ao quadro observado.
Todas as substâncias psicoativas, especialmente os benzodiazepínicos, possuem síndromes de abstinência protraídas, cursando com sintomas depressivos que excedem o período estabelecido
pelo DSM-IV (Juergens & Cowley, 2003). Requerem, por isso, um julgamento clínico apurado no
diagnóstico diferencial (Ashton, 1991). As substâncias químicas, per se, são capazes de induzir ou
piorar síndromes depressivas ou maniformes, que remitem ou melhoram apenas com a
abstinência, muitas vezes não requerendo tratamento medicamentoso posterior (Brunette et al., 2003;
Crawford et al., 2003; Rush, 2003). Períodos de abstinência de substâncias como álcool, hipnóticos,
opiáceos e estimulantes, podem ser marcados por sintomas depressivos, tais como disforia,
lentificação e alteração do sono, do apetite e da concentração (Brunette et al., 2003; Rush, 2003; Khrishnan,
2005). Ao contrário dos sintomas depressivos, os quadros maniformes são induzidos
principalmente pelo uso de estimulantes e alucinógenos (Robbins et al., 1982; Halpern, 2003) . Por fim, a
combinação de agentes depressores e estimulantes em usuários pesados pode tornar ainda mais
difícil a diferenciação entre os transtornos afetivos induzidos e não-induzidos por substâncias
(Strakowski et al., 2000; Strakowski e DelBello, 2000; Crawford et al., 2003).
Por outro lado, sintomas leves de mania, especialmente entre os cicladores rápidos e bipolares tipo
II, são freqüentemente diagnosticados como sinais de recaída e fracasso dos pacientes em
alcançar a abstinência ou como componentes da síndrome de abstinência da substância que
utilizavam. Sherwood et al. (2001) chamam a atenção para os altos índices de sintomas
hipomaníacos entre pacientes de serviços ambulatoriais estadunidenses, ressaltando que esses,
quando não diagnosticados, estão diretamente relacionados à baixa adesão e refratariedade ao
tratamento instituído. Vieta et al. (2000) observou que o transtorno bipolar tipo II é menos
diagnosticado do que deveria, em decorrência da semelhança entre as sintomatologias desse e de
suas principais comorbidades, entre elas o uso indevido de substâncias psicoativas.
Por fim, o transtorno bipolar do humor pode estar associado a outras patologias psiquiátricas, tais
como o déficit de atenção e hiperatividade e transtorno de personalidade boderline, ambos
intimamente associados ao consumo de substâncias psicoativas (Chopra et al., 2003). Desse modo, a
avaliação diagnóstica do psiquiatra deve ser cuidadosa, requerendo na maior parte dos casos,
algumas sessões com o paciente, familiares e grupos de convívio até a construção de um
diagnóstico responsivo às estratégias de tratamento farmacológicas e psicossocias propostas.
Tratamento
O indivíduo com transtorno bipolar do humor e uso indevido de substâncias psicoativas requer
acompanhamento multidisciplinar especializado, de longa duração, preferencialmente em ambiente
ambulatorial e supervisionado por uma única equipe profissional (NIDA, 2001; Department of Health, 2002).
Ainda que o tratamento apresente melhores resultados quando o transtorno bipolar e a
dependência de substâncias psicoativas aparecem em suas formas puras, a abordagem dessa
comorbidade pode ser bem-sucedida. Drake et al. (2004) acompanharam por três anos o
tratamento multidisciplinar de 51 pacientes com história de transtorno bipolar há mais de dez anos
e dependência de substâncias psicoativas. Ao final do seguimento, observaram que a maioria
estava abstinente e vivendo de maneira autônoma, com trabalho, contatos sociais com não-
usuários de álcool e drogas e satisfeitos com sua qualidade de vida. No entanto, houve pouca ou
nenhuma melhora dos sintomas psiquiátricos que os autores consideraram “crônicos” e
A primeira meta terapêutica deve ser a remissão dos sintomas afetivos agudos e obtenção de uma
abstinência estável (McElroy, 2004). Isso aumenta a adesão ao tratamento e melhora o prognóstico
de ambas as patologias (Department of Health, 2002). A gravidade da comorbidade não é per se um
preditor de fracasso, mas o profissional deve possuir a sua dimensão exata (figura 1), para que
possa escolher a estratégia medicamentosa e o ambiente de tratamento mais adequados
(Department of Health, 2002; Crawford et al., 2003).
GRAVIDADE DO USO INDEVIDO Dependente de álcool e bipolar (fase Paciente em episódio de mania de eutimia) que experimenta aumento bebendo diariamente grandes da ansiedade. quantidades de álcool. GRAVIDADE DO TRANSTORNO Paciente bipolar, eutímico, Paciente em mania, não ultimamente consumindo apresenta aumento do consumo de quantidades moderadas de álcool álcool na vigência da crise. durante os fins-de-semana. Figura 1: Aspectos relacionados à interação da gravidade do consumo de álcool e drogas em pacientes com
transtorno bipolar do humor, com exemplos de quadros possíveis em cada condição.
Farmacoterapia
Há pouco conhecimento acerca de estratégias medicamentosas específicas para esta população.
Segundo Kosten & Kosten (2004), a medicação ideal para o tratamento da comorbidade transtorno
bipolar do humor e uso indevido de substâncias psicoativas deveria possuir as seguintes
características: [1] remitir completamente as polarizações de humor (mania e depressão); [2]
aliviar os sintomas de abstinência e fissura; [3] prevenir de recaídas; [4] baixo potencial de
abuso/dependência; [5] via de administração e posologia de fácil manejo; [6] alta tolerabilidade pelo
paciente. Os fármacos que melhor se aproximam destes critérios serão apresentados a seguir.
Estabilizadores do humor
Em pacientes com transtorno bipolar do humor e dependência de substâncias psicoativas, a
utilização de qualquer tipo de estabilizador do humor contribui para a redução e melhora do padrão
de consumo entre estes pacientes (Brown et al., 2001). O lítio, mesmo considerado a melhor opção
terapêutica para o transtorno bipolar em sua forma pura (Macritchie et al., 2001), é significativamente
menos eficaz entre bipolares com dependência de álcool e drogas (Kleindienst & Greil, 2003).
Estudos preliminares, em sua maioria abertos e não-controlados, têm sugerido o valproato e o divalproato de sódio como alternativas eficazes ao lítio, pois além de sua ação estabilizadora do
humor, ambos têm se mostrado capazes de diminuir a impulsividade, os comportamentos
explosivos e a fissura em usuários de álcool e cocaína (Kosten & Kosten, 2004). Em um recente ensaio
clínico, Salloum et al. (2005) acompanharam 59 pacientes bipolares I e dependentes de álcool,
randomizados em dois grupos. O grupo de pacientes tratado com lítio e divalproato reduziu
significativamente seu padrão de consumo de álcool, se comparado ao grupo-placedo. O impacto
sobre os sintomas afetivos foi semelhante para ambos os grupos. Parece haver uma relação
entre a dose e a eficácia do divalproato sobre o uso indevido de drogas: Halikas et al. (2001), em
um estudo aberto com usuários de cocaína tomando divalproato, encontraram menos testes de
urina positivos para a substância entre aqueles com níveis séricos do medicamento acima de 50
Outra alternativa com potencial terapêutico é o topiramato: este estabilizador de ação gabaérgica
tem se mostrado eficaz na redução do craving e recaídas entre usuários de álcool (Kenna et al., 2004)
e cocaína (Kampman et al., 2004; Sofuoglu & Kosten, 2005). Por fim, a lamotrigina (Brown et al., 2003) e a gabapentina (Sokolski et al., 1999) se mostraram eficazes na melhora dos sintomas depressivos e
maniformes, do craving e da recaída em estudos abertos e não controlados com usuários de
cocaína. Não foram encontrados na literatura médica, estudos acerca da eficácia do topiramato,
da gabapentina e da lamotrigina em pacientes bipolares e usuários de substâncias psicoativas,
tampouco estudos controlados e com maior índice amostral.
Antipsicóticos
Os antipsicóticos atípicos, especialmente entre pacientes bipolares tipo II e usuários de álcool e
drogas, têm se mostrado eficazes como coadjuvantes dos estabilizadores do humor, tanto na
remissão das crises de mania, quanto no manejo da ansiedade (Albanese e Pies, 2004). Algumas
questões acerca dessa classe medicamentosa ainda precisam de mais esclarecimentos, a fim de
proporcionar mais segurança e precisão às estratégias farmacoterápicas dos especialistas. Por
exemplo, alguns estudos aventam que a prescrição de neurolépticos poderia funcionar como um
‘gatilho’ para o consumo de cocaína entre pacientes em mania que a utilizam para potencilizar
esse estado. Tal hipótese é corroborada por experimentos que demonstram aumento do consumo
de estimulantes em animais tratados com neurolépticos típicos. Apesar deste fenômeno ser
menos recorrente entre os neurolépticos atípicos, há necessidade de mais estudos para elucidar
Antidepressivos
O potencial terapêutico dos antidepressivos no tratamento da comorbidade depressão maior e uso
indevido de álcool e drogas tem se mostrado bastante desanimador. Nunes & Levin (2004)
realizaram uma meta-análise de artigos da literatura acerca do tema. Apenas artigos longitudinais,
duplo-cegos e controlados foram incluídos. Os autores concluíram que os antidepressivos trazem
apenas “benefícios modestos” para esses pacientes. Desse modo, nunca podem ser a única,
tampouco a principal abordagem instituída, devendo sempre estar associada a estratégias
(farmacológicas e/ou psicossociais) direcionadas ao uso indevido de substâncias. Pettinati (2004)
chegou a resultados semelhantes ao revisar a literatura acerca do uso de antidepressivos em
dependentes de álcool com depressão maior. Apesar de contribuir para a remissão dos sintomas
depressivos nesses indivíduos, tal melhora não teve impacto positivo sobre seu padrão de
As evidências acerca do papel dos antidepressivos no tratamento da comorbidade em questão são
escassas e carentes de mais embasamento científico. No entanto, parecem seguir a mesma
tendência observada com a comorbidade depressão maior: são ineficazes quando
desacompanhados de outros tratamentos (Salloum & Thase, 2000). Estudos abertos com inibidores seletivos da recaptação de serotonina são os mais recorrentes. Entre estes, a fluoxetina
encontra melhor aceitação, devido a sua segurança, ação farmacológica sobre a impulsividade e
baixa interação medicamentosa com substâncias psicoativas (Kosten & Kosten, 2004). Um estudo-
piloto, com 13 usuários de cocaína deprimidos utilizando venlafaxina, demonstrou que a mesma
foi capaz de remitir os sintomas depressivos e reduzir o consumo de cocaína na maioria dos
participantes (McDowell et al., 2000). Um estudo maior e com grupo-controle está sendo realizado no
Benzodizepínicos
Os benzodiazepínicos são prescritos com bastante freqüência (e eficácia comprovada) para os
pacientes com transtornos do humor (Licht, 1998). O mesmo não pode ser comprovado quando o
transtorno bipolar vem associado ao uso indevido de substâncias psicoativas: nesses casos, além
de não ser eficaz no manejo dos sintomas de depressão, mania e ansiedade, aumentam
consideravelmente o risco de dependência ao medicamento (Brunette et al., 2003). Desse modo,
essa classe de substâncias deve ser utilizada com bastante reserva (ou mesmo evitada) para esta
população (Roache et al., 1995; Johnson et al., 1998).
Abordagens voltadas para a abstinência de substâncias psicoativas
Qualquer abordagem famacoterápica para o tratamento da depressão ou mania perde eficácia
frente ao uso de drogas (Nunes e Levin, 2004). Desse modo, não se pode pensar no tratamento do
transtorno bipolar do humor em usuários de substâncias psicoativas sem estruturar abordagens e
atuar diretamente sobre o consumo de álcool e outras substâncias psicoativas. A abstinência
continua a ser o melhor parâmetro para a execução de uma boa avaliação clínica e planejamento
terapêutico do transtorno bipolar do humor (Brown et al., 2001; Nunes e Levin, 2004).
As abordagens motivacionais e cognitivo-comportamentais têm se mostrado as mais promissoras
(Department of Health, 2002; Carroll, 2004). Diversos programas específicos de tratamento têm aumentado
a adesão ao tratamento, reduzido recaídas, remitido sintomas afetivos e melhorado a reinserção
social entre os indivíduos bipolares com problemas relacionados ao consumo de álcool e drogas
Programas de tratamento estruturados
O tratamento das comorbidades deve ser planejado e estruturado longitudinalmente, com a
participação do paciente e seus familiares. O Department of Health (2002) propõe um modelo de
atenção multidisclipinar dividido em quatro etapas: engajamento, motivação para a mudança,
tratamento ativo e prevenção da recaída com treinamento de habilidades sociais. Inicialmente,
deve-se buscar o engajamento de todos para o tratamento, por meio de abordagens não-
confrontativas e empáticas. Nesse período, a observação e manejo de necessidades prementes,
tais como complicações clínicas, resolução conflitos interpessoais, melhora da qualidade de vida
podem ser mais importantes do que a abstinência imediata.
A partir do estabelecimento de um bom vínculo terapêutico, a motivação para a mudança deve
ser trabalhada, visando a um estilo de vida livre de sustâncias e mais compatível com a eutimia.
Cabe nesse momento, desenvolver atividades psico-educativas com o paciente sobre o consumo
de substâncias e suas repercussões na sua saúde física e mental, apresentar dados objetivos
acerca da evolução do seu estado (exames do perfil hepático, testes neuropsicológicos, .),
promover um balanço dos prós e contras da abstinência e da permanência do uso, avaliar as
barreiras e ameaças ao tratamento, levantar os problemas passados relacionados ao consumo de
drogas e ao transtorno bipolar do humor e escolher a estratégia farmacoterápica mais adequada.
Superadas as etapas anteriores, começa o tratamento ativo. Ele deve ser implementado de
maneira integrada, a partir de abordagens motivacionais e cognitivas, aconselhamento individual e
em grupo, preocupação com o suporte social. O período de tratamento é de longa duração. A
quarta etapa complementa a terceira e consiste na instituição de técnicas de prevenção da recaída e habilidades sociais, a partir da identificação fatores de risco de recaída e das Conclusão
Há uma série de lacunas acerca do entendimento etiológico do transtorno bipolar do humor
associado ao uso indevido de substâncias psicoativas. Por outro lado, há uma grande variedade
de estratégias medicamentosas e psicossociais em desenvolvimento, que ainda necessitam de
estudos mais elaborados e por tempo mais prolongado. Entre as pesquisas farmacoterápicas em
curso, merecem atenção especial aquelas acerca dos novos estabilizadores do humor, cujo
potencial terapêutico parece contribuir tanto para a remissão dos sintomas afetivos, quanto para a
melhora dos padrões de abstinência. A criação de programas estruturados de atenção, com
participação da família e supervisionado por equipe multidisciplinar parece ser o caminho mais
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