REMESSA OBRIGATÓRIA E O PRINCÍPIO DA ISONOMIA
MAURÍCIO GIANNICO – mestre e doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Advogado em São
SUMÁRIO: I- Introdução. II- O princípio da isonomia no
âmbito processual civil: premissas úteis ao desenvolvimento do tema. III- A remessa oficial: privilégio processual da Fazenda Pública? IV- Inovações legislativas e a crescente tendência doutrinária de restringir os benefícios processuais do Estado. V- Considerações finais à guisa de conclusão. VI- Bibliografia.
I- INTRODUÇÃO
No contexto do processo civil de resultados, o tema
inerente aos chamados ‘privilégios’ processuais do Estado constitui preocupação
atualíssima e fonte de constante inquietação na doutrina pátria. Destoando das
premissas universais do processo justo (AUGUSTO MARIO MORELLO)1 ou do processo justo e équo (VINCENZO VIGORITTI;2 LUIGI PAOLO COMOGLIO),3 hoje os exagerados
benefícios concedidos à Fazenda Pública representam, na prática, verdadeira agressão
à essência do Estado Democrático de Direito.
O excesso de prerrogativas processuais do Estado,
justificável apenas sob a ótica de uma inaceitável filosofia política totalitária,4
remete-nos a uma concepção ultrapassada, nociva e contrastante com as já conhecidas
tendências da universalização da jurisdição, da efetividade do processo e da
pacificação social com justiça. Esses privilégios são, no mais das vezes, indesejáveis
resquícios advindos dos sistemas anti-democráticos que regeram o contexto nacional
vivido nas décadas de 30 e 40 (Estado Novo) e na prática, subsistem por uma mera
Exceção feita ao ordenamento jurídico colombiano,6
a regra da devolução oficial não encontra paralelo em nenhum outro sistema jurídico.7
1- AUGUSTO MARIO MORELLO, El proceso justo, La Plata/B.Aires, Platense/Abeledo Perrot, 1994, esp.
2- VINCENZO VIGORITTI, Garanzie costituzionali del processo civile, Giuffrè, Milão, 1970. 3- LUIGI PAOLO COMOGLIO, La garanzia costituzionale dell’azione ed il processo civile, n. 33, p. 188,
citado por CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, A instrumentalidade do processo, 7a ed., Malheiros, São Paulo, 1999, pp. 80-81.
4- CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Instituições de processo civil, vol. 1, 1a ed., Malheiros, São Paulo,
2001, capítulo VII, item n. 83, p. 213.
5- Ou pior ainda, subsistem por força de lobbies e pressões de idoneidade no mínimo duvidosa. 6- Cfr. elucida PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON, Garantia do tratamento paritário das partes, inGarantias constitucionais do processo civil, JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI, 1a ed., 2a tir., Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 121.
7- Como salientou JEFFERSON CARÚS GUEDES, “além da lei processual geral, o reexame necessário está previsto em diversas leis esparsas relacionadas à desapropriação, ao mandado de segurança, à ação civil pública, à nacionalidade, ao poder econômico (ação popular), à anulatória de registros públicos, à tutela de urgência” (Duplo grau e a atenuação do reexame
E sob a órbita processual, tendo em vista primordialmente os objetivos buscados pelo
processo, não há como conceber a legitimidade e, tampouco, a constitucionalidade
Enquanto instrumento a serviço da realização concreta
dos direitos das partes, o processo só atinge seus verdadeiros escopos8 se pautado na
legitimação pelo procedimento.9 Isso significa que, na ótica instrumentalista em que
deve ser encarado, não mais podem ter espaço em nosso cenário jurídico elementos
que, de alguma forma, possam proporcionar a sensação de arbitrariedade ou de
preterição (desigualdade de tratamento) aos consumidores da justiça.
Mais do que qualquer outro ramo da ciência jurídica, o
direito processual civil moderno reserva a seus estudiosos a tarefa de verdadeiramente
trilhar o acesso à ordem jurídica justa (expressão utilizada por KAZUO WATANABE
para definir o significado da expressão acesso à justiça), eliminando os conflitos e
proporcionando à parte vencedora exatamente aquilo que almejava quando ingressou
“permanente necessidade de adaptação da tutela jurisdicional e de seus instrumentos à sua finalidade”.11 E sabe-se que, modernamente, “o processo não é mais definido como mera técnica, mas sobretudo como meio de acesso à justiça, nesse movimento renovatório do processo civil que exalta os valores presentes na ordem jurídico-substancial como substrato ideológico da ordem processual”.12
Inserido nesses relevantíssimos pilares, jamais poderá
ser tido como justo e équo um processo conduzido sem que, na prática, esteja
efetivamente garantida a igualdade de prerrogativas e de armas à disposição dos
litigantes. Sem isso, simplesmente não se enxerga a possibilidade de serem justos e
necessário, inAspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outras formas de impugnação às decisões judiciais, vol. 6, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002, p. 300).
8- Citando ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL
DINAMARCO (Teoria Geral do Processo, 11ª ed., São Paulo, Malheiros, 1995, pp. 23 e ss.), afirma LUIS GUILHERME AIDAR BONDIOLI que dentre os escopos essenciais do processo estão “os sociais (educação e respeito aos direitos; pacificação social), os políticos (preservação do valor liberdade e do ordenamento jurídico; participação democrática) e os jurídicos (atuação da vontade concreta do direito)” (Tutela específica: inovações legislativas e questões polêmicas, não publicado).
9- NIKLAS LUHMANN, Legitimação pelo procedimento, UnB, Brasília, 1980, trad. bras. MARIA DA
10- Cfr. FRANCESCO CARNELUTTI, Diritto e processo, Nápoles, Morano, 1958. 11- DONALDO ARMELIN, Tutela jurisdicional diferenciada, Revista de Processo, vol. 65, 1992, p. 45. 12- CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, em parecer não publicado.
legítimos os seus resultados, tampouco se chega à verdadeira pacificação social,
porque o processo eivado de injustiças, em última análise, nada pacifica.13
Como diz CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, “não há
legalidade no exercício do poder, quando o ato imperativo da autoridade estatal não tiver sido precedido de bastantes oportunidades de defesa e participação
verdadeiramente igualitária, outorgadas ao sujeito a ser atingido por seus efeitos”.14
Encarado sob essa perspectiva é que se propõe o estudo
do tema da isonomia processual, lembrando-se que o ponto de partida fundamental
reside na premissa segundo a qual a desigualdade em si não é repelida, mas sim a
Assim, num enfoque declaradamente voltado para o
processo e seus escopos primordiais, a seguir passaremos a analisar alguns dos
privilégios processuais do Estado e, na medida do possível, teceremos algumas
considerações sobre uma de suas faces mais questionadas e interessantes: a remessa oficial (CPC, art. 475, incs. II e III).
II- O PRINCÍPIO DA ISONOMIA NO ÂMBITO PROCESSUAL CIVIL: PREMISSAS ÚTEIS AO DESENVOLVIMENTO DO TEMA
Com peculiar propriedade, PAULO HENRIQUE DOS
SANTOS LUCON aborda o estudo do denominado direito processual constitucional,
aduzindo que as regras que regem o processo obrigatoriamente devem estar sempre
atentas à observância dos princípios, garantias e regramentos que a Constituição
Federal impõe.16 Fazendo remissão expressa a esses parâmetros ordenadores, diz o
conceituado jurista que “a tutela constitucional do processo realiza-se através de sua
13- Dentre as chamadas ondas renovatóriasdo processo civil moderno (MAURO CAPPELLETTI),
encontram-se ainda as metas da universalização da jurisdição e a da efetividade do processo. Enquanto instrumento para obtenção da justiça, a tendência moderna de visualização do processo consiste em repelir o processualismo exacerbado (DINAMARCO) e o culto da forma pela forma. Afinal, como disse ENRICO TULLIO LIEBMAN, “as formas são necessárias, mas o formalismo é uma deformação”.
14- CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, parecer denominado Legitimidade extraordinária - contraditório e processo administrativo - tutela específica - tutela antecipada, 1998, não publicado.
15- SÉRGIO FERRAZ, Privilégios processuais da Fazenda Pública e princípio da isonomia, Revista de
Direito Público, vol. 53-54, p. 42. Para ADA PELEGRINI GRINOVER, “no direito atual, prerrogativas e privilégios só podem admitir-se por exceção, em razão da diversidade das posições assumidas no ordenamento jurídico” (O processo em sua unidade – II, Forense, Rio de Janeiro, 1984, p. 263).
16- PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON, Garantia do tratamento paritário das partes, inGarantias constitucionais do processo civil, JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI, 1a ed., 2a tir., Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 91. observância, que estabelecerá padrões políticos e éticos destinados a também traçar
Já tivemos a oportunidade de afirmar em outro estudo
que esse modo de visualizar o sistema é decorrência de uma premissa inovadora, que
consiste em entender o processo civil em conjunto com os demais ramos do Direito,18
buscando norteá-lo sempre pelos proclamados ideais da igualdade, da celeridade, da
efetividade e da instrumentalidade das formas, observadas as já citadas proposições
maiores da justiça e da pacificação social.19
Nessa mesma linha de raciocínio, aduz SÉRGIO FERRAZ
que, na qualidade de instrumento de obtenção de justiça, o processo está conectado a
considerações fundamentais e aparece, portanto, como “reflexo necessário da índole da própria Constituição”, guardando íntima relação com ela.20
Da efetividade do princípio da igualdade entre as partes
– diz CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO – “ficam encarregados o legislador e o juiz, aos quais cabe a dúplice responsabilidade de não criar desigualdades e de neutralizar as que porventura existam”.21 Trata-se da configuração moderna da sempre atual fórmula
aristotélica, segundo a qual deve-se tratar com igualdade os iguais e desigualmente os desiguais, na medida dessas desigualdades.
No art. 5°, caput, de nossa Carta Maior lê-se que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Sob a ótica
eminentemente constitucional, FRANCISCO CAMPOS vê no próprio legislador o
primeiro e principal destinatário do princípio da isonomia.22 De fato, num primeiro
momento, cabe a ele conceber mecanismos eficazes para fazer valer a premissa maior
17- PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON, op. cit., p. 91. 18- MAURÍCIO GIANNICO, Arrematação: aspectos polêmicos e uma visão crítica do instituto, Revista de
Processo, vol. 104, out-dez/2001, p. 39 e ss.
19- Observa FLÁVIO LUIZ YARSHELL que “a prestação da tutela estatal, na subespécie tutela jurisdicional, realiza-se independentemente do conteúdo do resultado proporcionado pelo exercício da citada atividade (atividade estatal), de sorte que aquela primeira ocorre em favor de ambos litigantes e, por essa razão, mesmo em face do vencido. Isto porque a atuação da vontade concreta do direito, a eliminação do conflito (de que resulta pacificação) e a afirmação do poder estatal não conhecem vencedor ou vencido; simplesmente operam-se para ambos” (Tutela jurisdicional específica nas obrigações de declaração de vontade, São Paulo, Malheiros, 1993, p. 19).
20- SÉRGIO FERRAZ, Privilégios processuais da Fazenda Pública e princípio da isonomia, Revista de
21- CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Instituições de processo civil, no prelo, capítulo VII, item n. 82. 22- FRANCISCO CAMPOS, Direito constitucional, t. II, 5a ed., Freitas Bastos, São Paulo, 1956, p. 30.
MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO vai ainda mais longe, definindo o princípio da igualdade como uma verdadeira limitação ao legislador, que o proíbe de editar regras que estabeleçam privilégios (Curso de direito constitucional, Saraiva, São Paulo, 1973, p. 268).
Como decorrência direta do Poder Constituinte,23
compete ao próprio legislador a relevantíssima tarefa de instrumentalizar, garantir e
realizar, em termos práticos, as aspirações de índole constitucional. A razão disso é
simples: um sistema verdadeiramente equilibrado deve ser apto a garantir, até mesmo
na órbita das relações sociais, a igualdade nas suas mais diversas formas e expressões.
Por outro lado, inserido no âmbito processual civil,
o princípio da isonomia vem positivado em nosso ordenamento jurídico através do
art. 125, inc. I, do Código de Processo Civil, que dispõe competir ao juiz dirigir o
processo de modo a “assegurar às partes igualdade de tratamento”. Ou seja, sob a
ótica do processo, a igualdade está consubstanciada especialmente nas premissas
voltadas à paridade de tratamento entre as partes e seus procuradores (CPC, art. 125,
inc. I), tendo por finalidade primordial coibir abusos não só na elaboração das normas
do sistema, mas também no que tange à sua aplicação e interpretação.24
Nesse aspecto particular, a isonomia é norma
expressamente dirigida ao julgador. Na qualidade de verdadeiro maestro da relação
jurídico-processual, ele tem o dever institucional de oferecer às partes um tratamento
substancialmente paritário. Diz-se substancialmente porque, nessa relevante
empreitada, cabe a ele pautar-se de maneira interessada e atenta aos anseios das
partes e à efetiva concretização da justiça. Hodiernamente, não mais se tolera a figura
do chamado juiz passivo e espectador,25 apático e indiferente à busca da verdade real.
Nessa moderna linha de pensamento, ressaltando a
figura do juiz ativista (Judicial activism), brilhantemente preconizou JOSÉ ROBERTO
DOS SANTOS BEDAQUE a necessidade de uma postura ativa do juiz, tomando
iniciativas, participando efetivamente do contraditório e, acima de tudo, garantindo,
em cada prerrogativa e em cada faculdade singularmente considerada, a paridade de
23- Sobre o Poder Constituinte, v. lição de MICHEL TEMER, Elementos de direito constitucional, 12a ed.,
Malheiros, São Paulo, 1996, pp. 29 e ss.
24- SAN TIAGO DANTAS, Igualdade perante a lei e due process of law, Forense, Rio de Janeiro, Forense,
25- Cfr. CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, A instrumentalidade do processo, 7a ed., Malheiros, São Paulo,
26- JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE, Poderes instrutórios do juiz, RT, São Paulo, 1991.
Com grande proficiência, diz o processualista: “a cada dia aumenta o número de defensores da idéia de que somente um comportamento ativo do julgador faz com que seja respeitado um dos princípios processuais de maior relevância social: o da igualdade real entre as partes. Trata-se de um poderoso instrumento que o magistrado tem em suas mãos, que lhe possibilita corrigir as desigualdades econômicas presentes na relação processual” (p. 72). Citado por BEDAQUE, colaciona-se ainda a lição de PIERO CALAMANDREI: “la affermazione puramente giuridica della uguaglianza giuridica delle parti può rimanere lettera morta, se poi avviene che in concreto la disparità di cultura e di mezzi economici metta una delle parti in condizioni di non potersi
Com a experiência adquirida em sua já consagrada
carreira na magistratura, afirma BEDAQUE que a real igualdade das partes no processo
somente é verificada quandoa solução encontrada não for resultado do maior poderio
econômico ou da astúcia de uma delas:27“o processo não é um jogo, em que o mais capaz sai vencedor, mas um instrumento de justiça, com o qual se pretende encontrar o verdadeiro titular de um direito”.28
DINAMARCO assevera que nesse contexto de tratamento
paritário entre as partes deve-se dar destaque não apenas à igualdade em si mesma
considerada, mas também – o que é absolutamente imprescindível –, à atividade jurisdicional de promover o equilíbrio em situações de hipossuficiência (sentido lato, compreendendo desde a pobreza, a falta de informação, até as carências culturais
Afinal, recorrendo novamente à ARISTÓTELES, viu-se
que a efetiva igualdade às vezes só é alcançada através, p.ex., da imposição de ônus
mais pesados à parte economicamente mais forte ou, analogicamente, através da
proteção do mais fraco (desde que, obviamente, sadia e corretamente direcionada).
Somente criando-se situações de aparente desigualdade é que, em inúmeras situações,
faz-se possível atingir o necessário equilíbrio entre os litigantes, algo que, em última
instância, é o corolário maior da isonomia no sentido processual.
Portanto, novamente na esteira de DINAMARCO, essa
importante noção de equilíbrio no processo também compreende a neutralização das desigualdades. Diz o jurista que “neutralizar desigualdades significa promover a igualdade substancial, que nem sempre coincide com uma formal igualdade de tratamento porque esta pode ser, quando ocorrentes essas fraquezas, fonte de servire di questa uguaglianza giuridica, perchè il costo e le difficoltà tecniche del processo, che la parte abbiente e colta può facilmente superare coi propri mezzi e col farsi assistere senza risparmio da competenti difensori, possono constituire invence per la parte provera un ostacolo spesso insormontabile sulla via della giustizia” (Instituzioni di diritto processuale civile, Napoli, Morano Editore, vol. IV, 1970, p. 231, inPoderes instrutórios do juiz, RT, São Paulo, 1991, p. 72).
27- JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE, Poderes., p. 74. 28- JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE, Poderes., p. 74. E assim conclui o jurista: “não se pode aceitar que, em razão da hipossuficiência de um dos litigantes, se chegue a uma decisão injusta, que não corresponde à realidade fática submetida a julgamento. Isso representaria verdadeiro fracasso da atividade jurisdicional, cuja finalidade é promover a atuação da norma aos fatos efetivamente verificados. Somente assim se alcançará a verdadeira paz social. Inadmissível que eventuais desigualdades impeçam este resultado” (pp. 74-75).
29- CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Instituições de processo civil, no prelo, capítulo VII, item n. 82.
Cita-se ainda o ensinamento de SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, segundo o qual o acesso à justiça pressupõe “a existência de meios, vias e mecanismos postos à disposição das partes para demandarem o provimento judicial ou resistirem à pretensão ajuizada, afastando os obstáculos econômicos, culturais e sociais, como os custos do processo, a desinformação e as restrições à legitimidade ativa” (A efetividade do processo e a reforma processual, inConstituição de 1988 e processo, coord. ROGÉRIO LAURIA TUCCI, Saraiva, São Paulo, 1989, p. 231). terríveis desigualdades. A tarefa de preservar a isonomia consiste, portanto, nesse tratamento formalmente desigual que substancialmente iguala”.30
III- A REMESSA OFICIAL: PRIVILÉGIO PROCESSUAL DA FAZENDA PÚBLICA?
O art. 475, caput, do Código de Processo Civil, enuncia
estar sujeita “ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeitos senão depois de confirmada pelo tribunal” a sentença proferida contra a Fazenda Pública (inc. I), bem
como aquela que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de
Em sede jurisprudencial, o entendimento uníssono é o de
que a remessa oficial foi recepcionada pela atual Constituição Federal, sendo
perfeitamente compatível com seus dizeres. O Tribunal Regional Federal da Terceira
Região inclusive editou a súmula n. 10, atestando sua constitucionalidade: “o art. 475, inciso II, do CPC (remessa oficial) foi recepcionado pela vigente Constituição
Contudo, a nosso ver o reexame necessário afronta a
Constituição Federal, especificamente no que tange ao aludido princípio da isonomia.
Como se não bastassem as inúmeras vantagens processuais de que dispõe o Estado,32
a regra da devolução oficial o coloca em situação manifesta e injustamente mais
cômoda, além de apoiar-se no falso pressuposto da incapacidade profissional, do
desleixo ou mesmo da corrupção generalizada entre seus procuradores.33
Como já enunciou a prof. ADA PELEGRINI GRINOVER,
trata-se de verdadeiro ‘privilégio’ (na acepção pejorativa da palavra), antiisonômico e
inconstitucional, já que estabelece vantagem baseada na pessoa e não na relevância
pública da matéria discutida.34 Sobre o significado de privilégio, aliás, afirma SÉRGIO
FERRAZ tratar-se “de uma posição de supremacia jurídica reconhecida a um determinado sujeito, em superioridade aos demais que se lhe antepõem”, esclarecendo
30- CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Instituições de processo civil, no prelo, capítulo VII, item n. 82. 31- Conforme nova redação desse dispositivo, dada pela lei n. 10.352, de 26 de dezembro de 2001. 32- Dentre os privilégios em favor da FAZENDA PÚBLICA, cita-se os benefícios (de constitucionalidade
também duvidosa) do prazo em dobro para recorrer e ajuizar ação rescisória (CPC, art. 188, inc. I) e em quádruplo para contestar (inc. II).
33- CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Instituições de processo civil, op. cit., p. 214. 34- ADA PELEGRINI GRINOVER, Princípios constitucionais e o Código de Processo Civil, S.Paulo, 1975,
estar ele ligado a uma situação de preferência, de benefício não estendido aos
Para justificar esse benefício, costumeiramente fala-se
num perigo de que as sentenças possam transitar em julgado tendo um só juiz como
prolator,36 aludindo-se ainda a uma suposta violação à garantia do duplo grau de
jurisdição. Endossando tal posição, em recente decisão da eminente Ministra NANCY
ANDRIGHI, o Superior Tribunal de Justiça classificou a remessa obrigatória como
“uma manifestação remanescente do princípio inquisitório pela qual se protege o interesse público, e, em última ratio, o interesse de todos os cidadãos”. 37
E fazendo remissão à eventual afronta ao duplo grau,
conclui seu voto: “por tal razão, ainda que inexistente o recurso voluntário interposto pela Fazenda Estadual deve o Tribunal revisor proceder a reanálise da sentença, sob pena de violar o duplo grau de jurisdição, princípio maior que transcende o entendimento de que na hipótese o órgão julgador estaria advogando os interesse do Estado na qualidade de parte no processo”.38
Todavia, não visualizamos qualquer perspectiva de
prejuízo ou violação ao duplo grau de jurisdição. A nosso ver, parece indiscutível que,
assim como os litigantes ordinários, em caso de derrota, sempre sobreviveria à
Fazenda Pública a possibilidade de interposição de recurso de apelação, garantindo-se
o total acesso à instância superior e, em última análise, ao próprio duplo grau
Sobre a regra do duplo grau de jurisdição, aliás,
interessante mencionar que as recentes reformas do Código de Processo Civil
inclusive atenuaram, de forma aparentemente constitucional,39 sua incidência em
nosso sistema processual. O novo § 3° do art. 515, introduzido pela lei n. 10.352, de
26 de dezembro de 2001, explicitamente permite o imediato julgamento de mérito, em
sede de apelação (e em uma espécie de instância única), de demandas extintas sem
apreciação meritória em primeiro grau de jurisdição.
35- Privilégios processuais da Fazenda Pública e princípio da isonomia, Revista de Direito Público,
36- PONTES DE MIRANDA, Comentários ao Código de Processo Civil, tomo V, 3a ed., Forense, Rio de
37- STJ, Resp n. 52.101-ES, j. 15.8.2000, DJU 11.9.2000, p. 232. 38- STJ, Resp n. 52.101-ES, j. 15.8.2000, DJU 11.9.2000, p. 232. 39- Sobre a constitucionalidade do § 3° do art. 515 do Código de Processo Civil, v. excelente ensaio de
LUIZ RODRIGUES WAMBIER e TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER, in Breves comentários à 2a fase da Reforma do Código de Processo Civil, 1a ed., RT, São Paulo, 2001, pp. 86-96.
Por outro lado, os juristas que defendem a
constitucionalidade da remessa obrigatória invocam ainda o argumento de que, nas
causas sujeitas à incidência do disposto no art. 475 do Código de Processo Civil,
estariam em jogo interesses amplos e que dizem respeito à toda a sociedade. Alegam
que em função dessa condição diferenciada justificar-se-ia e instrumentalizar-se-ia a
Nesse mister, enuncia RITA GIANESINI que, em virtude
da natureza jurídica dos interesses em debate, não haveria inconstitucionalidade,
tampouco infringência ao princípio da isonomia.40 Defende a jurista que o interesse
público deve ter em juízo tratamento diferenciado por não poder ser confundido com o
interesse particular, o qual, normalmente, “é egoísta e visa tão-somente benefício
Também argüindo a constitucionalidade da remessa ex officio, enuncia ADILSON PAULO PRUDENTE DO AMARAL FILHO que os privilégios
processuais do Estado “são dotados de um fundamento lógico capaz de justificá-los – a saber, o interesse inarredável em bem administrar-se o dinheiro público”.42
Mas na realidade, a nosso ver esse argumento apenas
corrobora a inequívoca necessidade de uma postura ativa e responsável (leia-se,
diligente) da Fazenda Pública. A iniciativa de apelar é extremamente saudável ao
Estado e, em última instância, muitíssimo mais eficaz na intentada de reverter uma
situação a ela desfavorável. Quando perdedora, nada mais lógico (e isonômico) que
sejam empenhados rigorosamente todos os esforços na tentativa de ver anulado ou
reformado o decisum proferido contra o Estado.
Afinal, para que se tenha uma tutela plena e que, na
prática, possa realmente viabilizar a reversão das decisões desfavoráveis à Fazenda
Pública, não há dúvidas de que a mera remessa oficial dos autos à instância superior é
providência notoriamente menos efetiva do que a interposição de um recurso de
A experiência mostra que a remessa oficial nem de longe
substitui uma apelação bem elaborada. É somente por meio da interposição recursal
40- RITA GIANESINI, A Fazenda Pública e o reexame necessário, inAspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outras formas de impugnação às decisões judiciais, vol. 4, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, p. 933.
41- RITA GIANESINI, op. cit., p. 933. 42- A remessa oficial e o princípio da igualdade, Revista de Processo, vol. 80, 1995, p. 222.
que se torna possível demonstrar, com a plenitude e o zelo necessários, os eventuais
errores contidos nas decisões judiciais.
Assim, até mesmo por uma questão de coerência,
exatamente em homenagem à defesa dos relevantes interesses estatais é que temos por
inconsistente esse argumento, considerando-o inadequado para justificar a
Os defensores desse benefício sustentam ainda uma
suposta inépcia administrativa do Estado,43 o que o diferenciaria dos demais litigantes.
Apontam o mecanismo estatal como uma estrutura pesada e burocrática, em que as
providências e decisões costumam ser mais demoradas. Com base nesse critério
diferenciador, tentam justificar o privilégio da remessa obrigatória.
Mas esse argumento também não nos parece razoável.
O Estado definitivamente não é o único ente complexo e burocrático a litigar em
juízo. A partir do fenômeno da globalização, nos dias de hoje, deparamo-nos cada vez
mais com a existência de entidades privadas intrincadas e de proporções quase
imensuráveis, cuja complexidade pode ser perfeitamente equiparada aos entes estatais.
Exatamente nesse sentido, alerta PAULO HENRIQUE DOS
SANTOS LUCON que a regra da devolução oficial (por ele rotulada como uma
“indevida compensação”) não tem qualquer razão de ser, já que, adotando-se essa
equivocada premissa, ter-se-ia que os grandes conglomerados econômicos dotados de
personalidade jurídica também deveriam ter esse direito.44
Em tal contexto de complexidade estatal, até mesmo a
prof. RITA GIANESINI, ferrenha defensora dos atuais benefícios processuais da Fazenda
Pública, reconhece que a constitucionalidade dessa regra não tem sua razão de ser na
supressão de falhas dos procuradores. Isso porque, em caso de lapso, estariam eles
sujeitos a processo disciplinar e outras sanções administrativas.
Por outro lado, argüindo a inconstitucionalidade da
remessa ex officio, traz-se ainda a pertinente lição de CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO:
“outras entidades existem, como as grandes empresas e certas instituições privadas de fins benemerentes, que enfrentam as mesmas dificuldades e não são tratadas pelo mesmo modo. Além disso, o Ministério Público é hoje uma entidade diligente e
43- Conforme aduziu PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON, severo crítico da manutenção desse
privilégio estatal (inGarantia., p. 121).
44- PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON, op. cit., p. 121.
organizadíssima, para a qual os prazos privilegiados são apenas uma cômoda
Aliás, como diz ROGÉRIO LAURIA TUCCI, a missão do
Poder Judiciário é declarar relações jurídicas e não suprir as deficiências dos
representantes da Fazenda ou do Ministério Público.46 E acrescenta PAULO LUCON
que, além de pôr em total descrédito a Administração Pública e o próprio Poder
Judiciário, esse privilégio denota verdadeiro desprezo ao tratamento paritário das
Quanto ao modo em que vem sendo interpretada a regra
da remessa oficial, NELSON NERY JUNIOR faz veementes críticas quanto à sua exegese
jurisprudencial.48 Segundo o renomado jurista, da forma como vem sendo interpretado
pelos tribunais, o reexame obrigatório é flagrantemente inconstitucional.
Sabendo-se que a devolução ex officio transfere o
conhecimento integral da causa ao tribunal superior “com a finalidade de estabelecer-se controle sobre a correção da sentença de primeiro grau”, 49 em tese, seja qual for o
vício do decisum (tanto em prol como contra a Fazenda), deve ele ser sanado.
Em outras palavras, competindo ao tribunal analisar rigorosamente toda a matéria
discutida no processo, qualquer vício eventualmente constatado na sentença –
independentemente de beneficiar ou prejudicar o Estado –, por definição, deveria ser
objeto de reforma pelo órgão ad quem.
Com propriedade, afirma NERY que, sendo a translação
amplíssima, deve comportar verdadeiro reexame da sentença e não apenas proteção
aos interesses e direitos da Fazenda Pública: “o escopo final da remessa obrigatória é atingir a segurança de que a sentença desfavorável à fazenda pública haja sido escorreitamente proferida. Não se trata, portanto, de atribuir-se ao judiciário uma espécie de tutela à fazenda pública, a todos os títulos impertinente e intolerável”.50
assim conclui o jurista: “conferir-se à remessa necessária efeito translativo ‘pleno’ porém secundum eventum, afigura-se-nos contraditório e inconstitucional. Contraditória porque, se há translação ‘ampla’, não
45- CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Instituições de processo civil, op. cit., p. 211. 46- ROGÉRIO LAURIA TUCCI, Constituição de 1988 e processo, Saraiva, São Paulo, 1989, p. 55. 47- PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON, op. cit., p. 121. 48- NELSON NERY JUNIOR, Princípios do processo civil na Constituição Federal, 3a ed., Revista dos
49- NELSON NERY JUNIOR, Princípios., p. 63. 50- NELSON NERY JUNIOR, Recursos no processo civil (Princípios fundamentais – Teoria geral dos recursos), 3a ed., Revista dos Tribunais, São Paulo, 1996, p. 355.
pode ser restringida à reforma em favor da fazenda; inconstitucional porque, se
secundum eventum, fere a isonomia das partes no processo”.51 De fato, ainda que
hipoteticamente fosse considerada em tese válida a remessa oficial, essa postura
interpretativa de nossos tribunais mostra-se completamente equivocada.
Entretanto, o entendimento pacífico do Superior
Tribunal de Justiça é o de não admitir a reforma em prejuízo da Fazenda Pública
(reformatio in pejus). Nesse sentido é a súmula 45 dessa Corte: “no reexame necessário, é defeso, ao Tribunal, agravar a condenação imposta à Fazenda
Por fim, os defensores da remessa oficial argumentam
que ela justificar-se-ia ainda em função do excessivo volume de trabalho existente nas
repartições públicas, supostamente grande demais para o diminuto número de
funcionários contratados. Dizem que, sem esse beneficio, dificultar-se-ia
demasiadamente a defesa dos interesses estatais, de forma que a elaboração dos
recursos de apelação poderia inviabilizar a defesa da Fazenda Pública.
Todavia, somos obrigados a discordar também desse
argumento. Ora, sabe-se que o dia-a-dia da grande maioria dos advogados militantes é
tão atribulado (ou talvez até mais) quanto a rotina dos procuradores da Fazenda
Pública. Especialmente sabendo-se que estes últimos contam com outra regalia para
contrabalançar o eventual excesso de trabalho, atinente à enorme dilatação de seus
Assim, lembrando novamente do enfoque processual
desse estudo, tendo em vista as finalidades principais do processo, jamais poderíamos
compactuar com esse raciocínio. Portanto, qualquer diferenciação baseada nesse
IV- INOVAÇÕES LEGISLATIVAS E A CRESCENTE TENDÊNCIA DOUTRINÁRIA DE RESTRINGIR OS BENEFÍCIOS PROCESSUAIS DO ESTADO
O Código de Processo Civil de 1939 dispunha que aos
representantes da Fazenda Pública contar-se-iam em quádruplo os prazos para
contestar e em dobro para interpor recursos (art. 32). Ainda durante sua vigência, a
doutrina já assinalava que o reexame obrigatório violava o princípio da isonomia.
Dizia ANACLETO DE OLIVEIRA FARIA que os privilégios processuais conferidos aos
51- NELSON NERY JUNIOR, Recursos., p. 356.
entes de direito público eram antiisonômicos e tinham como raiz os períodos
não-democráticos da vida política de nosso país.52
Sob essa perspectiva, o Anteprojeto do Código de
Processo Civil de 1973, elaborado por ALFREDO BUZAID, suprimira alguns dos
benefícios fazendários, dentre os quais os prazos mais dilatados. Assim dizia seu
art. 207: “para falar nos autos terão o representante da Fazenda Pública e o órgão do Ministério Público prazo igual ao das partes”.53
Todavia, a Comissão Revisora do Anteprojeto adotou
posição intermediária, dando à Fazenda Pública prazo dobrado para contestar e
recorrer, mas colocando o Ministério Público em igualdade com os litigantes em geral,
conferindo-lhe prazo simples para tais providências.
De qualquer modo, a regra que acabou prevalecendo,
consubstaciada no art. 188 de nosso diploma processual, determinou que “computar-se-á em quádruplo o prazo para contestar e em dobro para recorrer, quando a parte for a Fazenda Pública ou o Ministério Público”. Como observa a prof. ADA
PELEGRINI GRINOVER, não só se voltava ao sistema de 1939, como ainda se ampliava
o benefício também ao Parquet.54
Em período mais recente, por força da medida provisória
n. 1.774-20, de 14 de dezembro de 1998, chegou-se inclusive a contemplar os entes
públicos enumerados pelo art. 188 do Código de Processo Civil com prazo em dobro
para propor ação rescisória. Entretanto, felizmente o Supremo Tribunal Federal,
através de sessão realizada em 22 de abril de 1999, decidiu suspender a eficácia dessa
disposição, “por entender relevante a tese de ofensa ao princípio da isonomia”.55
Mas apesar dessas manifestações legislativas esparsas,
atualmente percebe-se uma tendência tênue, porém crescente, espelhada inclusive em
recentes projetos legislativos, de se restringir a incidência da regra da remessa oficial.
Inserido no movimento denominado “A Reforma da Reforma”, o projeto de lei
n. 3.474/00, elaborado pela Comissão Conjunta do Instituto Brasileiro de Direito
52- ANACLETO DE OLIVEIRA FARIA, Do princípio da igualdade jurídica, São Paulo, 1972, p. 245, citado
por WALTER BORGES CARNEIRO, inDuplo Grau de jurisdição obrigatório – alguns aspectos, Revista brasileira de direito processual, vol. 20, Forense, 1979, p. 134.
53- Cfr. narra ADA PELEGRINI GRINOVER, O processo., p. 262. 54- ADA PELEGRINI GRINOVER, O processo.., p. 263. 55- STF, medida cautelar na ADIn n. 1.910-DF, rel. Min. SEPÚLVIDA PERTENCE. Como esclarece
THEOTÔNIO NEGRÃO, essa regra foi reeditada até 6 de maio de 1999 (cfr. art. 1° da medida provisória n. 1.798-4), deixando de sê-lo quando esta norma foi reeditada sob n. 1.795-5 (2 de junho de 1999). Permanece, portanto, a redação primitiva do art. 188 do Código de Processo
Processual (IBDP) – posteriormente convolado na já vigorante lei n. 10.352/01 –
modificou o âmbito de abrangência do art. 475 desse diploma legal.56
Em sua exposição de motivos está dito que, apesar das
manifestações doutrinárias em contrário, ainda seria conveniente manter o reexame
necessário, tendo em vista melhor preservar os interesses do erário. Todavia, a bem da
eficiência do processo, além de correções de cunho técnico,57 esse novo diploma
legislativo faz algumas inteligentes alterações na atual legislação processual.
Dessas alterações, duas em especial merecem algumas
considerações de nossa parte.58 Senão, vejamos.
Inicialmente, a lei eliminou o reexame nas causas de
valor não excedente a sessenta salários mínimos. A justificativa para tanto – a nosso
ver extremamente saudável59 – é a de que eventual defesa do erário não compensa a
demora e a redobrada atividade procedimental que o reexame necessariamente impõe,
sobrecarregando os tribunais.60 Como se lê na exposição de motivos do projeto, “os descalabros contra o erário acontecem, isto sim, nas demandas de grande valor”.
Civil (Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, 32a ed., Saraiva, São Paulo, 2001, p. 266).
56- Eis a nova redação do art. 475 do Código de Processo Civil, em sua íntegra: “Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença: I- proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público; II- que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI). § 1°. Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los. § 2°. Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor. § 3°. Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente”.
57- Nesse tópico, o projeto prevê a substituição da referência à “improcedência da execução” de dívida
ativa da Fazenda, pela correta menção à “procedência dos embargos” opostos à execução da dívida ativa. Acrescenta a exposição de motivos que, procedentes ou improcedentes são sempre os embargos do executado, não a execução propriamente dita, na qual o contraditório se apresenta mínimo.
58- Outra modificação prevista no projeto foi a eliminação da incidência da remessa obrigatória nas
ações anulatórias de casamento, pois nelas o reexame necessário não mais apresenta qualquer sentido, já que nosso sistema jurídico que passou a admitir o divórcio a vínculo. Seja como for, não fazendo parte de nosso objeto de estudo, fica aqui apenas a menção a essa alteração.
59- Além de desafogar o Poder Judiciário, a proposta nos parece extremamente inteligente porque, como
dito na própria exposição de motivos, não são nas causas de pequeno potencial econômico – mas sim naquelas de grande vulta – que potencialmente se pode visualizar prejuízos ao erário, bem como a existência de corrupção. Aliás, nunca é demais ressaltar que, se a Fazenda Pública entender conveniente submeter a causa a novo julgamento, nada impede que interponha a vulgarmente chamada apelação voluntária.
60- Opondo-se a essa mudança legislativa, diz RITA GIANESINI que “esta restrição pode prejudicar de muito a Fazenda Pública, pois questões de grande repercussão, questões envolvendo teses jurídicas relevantes para o Poder Público, como zoneamento, loteamento, patrimônio imobiliário, questões abrangendo várias pessoas em causas individuais poderão não representar condenação pecuniária elevada, se consideradas de per si” (op. cit., p. 920).
Por outra via, diz o recém acrescido § 3° do art. 475 do
Código de Processo Civil que, nos casos em que a sentença estiver fundada em
jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal (v.g., ações diretas de
inconstitucionalidade), ou súmula desse tribunal ou do tribunal superior competente,
não mais haverá o reexame necessário. Em tais casos – complementa a exposição de
motivos –, a própria Administração tem baixado instruções a seus procuradores
dispensando a interposição de apelação, providência essa, todavia, inoperante se for
Outra iniciativa legislativa no sentido de restringir o
âmbito de incidência do reexame necessário está na lei que instituiu os juizados
especiais federais. Ao instituir tais juizados, o legislador expressamente optou por
afastar a regra do duplo grau obrigatório (lei n. 10.259/01, art. 13), condicionando
eventual reexame à interposição de recurso voluntário.
Dessa forma, ainda que tímidas, progressivamente as
críticas doutrinárias – que a cada dia vêm sendo reforçadas – vão ganhando espaço na
tentativa de mudar nossa legislação. Porém, sabe-se hoje que a grande dificuldade
prática – citando-se novamente aqui o próprio anteprojeto de BUZAID (1973), que
restou completamente desvirtuado no que tange à remessa oficial – resume-se em
convencer nosso Poder Legislativo da necessidade de concretizar essas mudanças.
Só assim poder-se-á realmente falar em equilíbrio processual e em efetiva paridade de
V- CONSIDERAÇÕES FINAIS À GUISA DE CONCLUSÃO
A remessa oficial é inconstitucional, vez que fere o
princípio constitucional da isonomia. Como tentamos demonstrar, representa uma
diferenciação que não encontra lastro suficiente a justificá-lo, tratando-se, para utilizar
a linguagem de SÉRGIO FERRAZ, de uma desigualdade injustificada61 e, portanto,
incompatível com nosso ordenamento jurídico.
Não se nega que o Estado possui características
peculiares que, nos planos físico e administrativo, distinguem-no dos demais
consumidores da justiça. Contudo, nossa conclusão é a de que, sob a ótica do processo
e de seus escopos fundamentais, essas diferenças não autorizam os privilégios hoje
61- SÉRGIO FERRAZ, Privilégios processuais da Fazenda Pública e princípio da isonomia, Revista de
existentes em prol dos entes de direito público, já que mostram-se incompatíveis com
os ideiais e as prerrogativas do moderno processo civil de resultados.
Mais do que isso, na qualidade de resquícios legislativos
oriundos dos sistemas totalitários vivenciados nas décadas de 30 e 40, esses benefícios
processuais atentam contra um direito processual equilibrado, paritário e
modernamente concebido para a realização concreta da justiça (BEDAQUE).62
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